Em uma manhã comum, lá pelo finalzinho dos anos 80, algo diferente aconteceu nas paredes cinzentas de uma viela entre as ruas Gonçalo Afonso e Medeiros de Albuquerque, na Vila Madalena, em São Paulo.
Um misterioso homem morcego surgiu do nada, deixando os moradores intrigados. Não demorou muito para que o local ganhasse o apelido do famoso personagem: Beco do Batman.
Era o início da história de uma das principais atrações turísticas da cidade. A partir disso, estudantes que frequentavam os bares locais passaram a cobrir a travessa com arte, transformando-a em uma galeria a céu aberto.
Até hoje, pouco se sabe sobre os precursores daquele desenho. Quem estaria por trás do icônico Batman que nomeou um dos pontos mais visitados em SP?
O CHAMADO DO HERÓI
Low-profile, ele nunca assinou seus trabalhos nas ruas. Mesmo no “anonimato”, já selecionou uma galera pra compor as mostras de Graffiti no MIS, já grafitou teatro com a orquestra de câmara da USP tocando simultaneamente, participou de várias exposições no Brasil, em Berlim, Praga – e até ministrou workshops na Europaschule.
Um dos precursores do graffiti em Sampa, Job Leocadio trocou a calculadora HP por latas de spray em busca de adrenalina e da democratização da arte. Responsável também pelo Batman que deu início ao famoso Beco do Batman, adora brincar com assuntos sérios.
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Em entrevista exclusiva ao El Cabriton, ele conta como tudo começou, por volta de 1986, quando tinha 20 anos.
BATMAN E ROBIN
“Eu morava em São Caetano dos Sul, mas trabalhava no 18º andar do prédio do UNIBANCO, todo de vidro, de frente para o Viaduto do Chá, no centrão de Sampa, uma puta paisagem “urbana” linda. Eu era Matemático Financeiro, da equipe de “Leasing”, e passava o dia com uma HP 12c na mão, fazendo cálculos astronômicos.
Nesta época, nossa economia era bem bizarra. Muitas taxas que flutuavam diariamente e a inflação beirava os 500% a.a., piração total. Tinha cansaço mental, que refletia fisicamente, mas eu sempre gostei de resolver problemas. Tinha acabado de entrar na faculdade de Comércio Exterior, em SCS, e vim de um colégio técnico. Foi nesse colégio que conheci o Jorge Tavares.
No curso de Comércio Exterior, a angústia começou a dar sinais. A ânsia por querer algo a mais foi ficando latente, situação que as exatas não atingia. O ABC Paulista, sempre foi um reduto mais anárquico, as roupas, as músicas, as atitudes – e essa efervescência cultural refletia diretamente em mim.
O Jorge entrou na mesma faculdade que eu, cursando administração. Já éramos amigos do colégio e num dado momento, por volta de 2 meses de aula, desabafei que aquele ambiente estava insuportável pra mim. Disse que viraria a mesa e iria estudar Artes em São Paulo. O Tavares disse que me acompanharia nesta investida. Eu tinha uma lambretinha e combinamos de irmos juntos pra lá.
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Quando fiz uma rápida pesquisa, vi que a Faculdade de Belas Artes poderia ser o início dessa virada. Quando prestamos o vestibular, o prédio era na Pinacoteca, uma arquitetura deslumbrante, universo completamente diferente do que eu havia estado. Até então, era tudo o que eu desejava. Passamos no vestibular – e em 1987 iniciamos o curso.
Logo, a Belas Artes mudou seu campus para a Vila Mariana, uma completa desestruturação. O prédio, me remetia a tudo o que havia deixado pra trás. A angústia voltou de imediato e o que me salvou foi o encontro com a arte, algo que eu não me afastaria nunca mais.
No 1º semestre, descobri que existia a FAAP. Mudei na sequência e foi lá que me senti completamente envolvido num universo artístico que tanto mentalizei. O Tavares (que se tornaria outro pioneiro do graffiti de Sampa) continuou na Belas Artes, e nessa altura, eu já havia largado o emprego no Unibanco e montado um ateliê com ele, na rua Amaral Gurgel”.
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SÃO CAETANO DO SUL: A BATCAVERNA
Durante esse processo, os dois mergulhavam em intensas discussões sobre arte. Mesmo diante de uma repressão latente e completamente distante de galerias, o graffiti se revelava o caminho perfeito, graças ao seu espírito transgressor e anárquico que acompanhava também ambos os estudantes de São Caetano.
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Job complementa:
“Sempre andei de skate, desde 1978, até hoje, total for fun. Naquela época, o skate não era valorizado como é hoje em dia. Na verdade, ele fazia parte de um cenário de rebeldia, assim como o graffiti, ambos vistos como atividades marginais. Essa ligação também me fez mergulhar nesse universo cheio de possibilidades.
O graffiti tinha ainda uma pegada HQ e os artistas tinham um super-herói pra chamar de seu. Os maiores expoentes eram o Alex Vallauri com “Mandraque”, Mauricio Villaça com “Fantasma” e Julio Barreto com “Spirit”. Em SCS, o Numa Ramos fazia o “Batman”.
Como São Caetano tinha o estigma de ser Gotham City, primeiro, pelas semelhanças arquitetônicas, e depois, por ser um reduto Rockabilly, eu e o Tavares, que também éramos de SCS, resolvemos fazê-lo também. Porém, nosso Batman estava sempre em situações cotidianas: fumando, passeando com cachorro e por aí vai. Por volta do ano de 1987 e 1988, infestamos a cidade com o personagem.
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Em seguida, emplacamos na Prefeitura o projeto “São Caetano conta sua história em Graffiti”, convidamos o Numa e o Vado do Cachimbo (também grafiteiro do ABC) para compormos a exposição juntos. Escolhemos muros deteriorados, muitas vezes nos becos da cidade, para dar nova vida aos locais e deixar a cidade mais lindona. Foi nesse contexto que logo em seguida acabei chegando ao tal “Beco do Batman”, na Vila Madalena.”
DE GOTHAM À METRÓPOLIS
Quando mudou para a FAAP, Job conta que fez novos amigos; no 2º semestre, conheceu Carolina. Papo vai, papo vem, ele disse à ela sobre o projeto de graffiti em SCS; ela comentou que trabalhava numa agência de publicidade em um beco e que fazia questão de levar Leocadio lá, pois o acesso era bem difícil.
“Não deu outra! Fiquei pirado naquelas vielas! O local possuía poucas interferências, tanto de graffitis, quanto pixações, por isso, guardei bem a entrada pela parte de cima, próxima a Av. Sumaré, e voltei, tempos depois com o Tavares para fazermos nossos Batman nesse beco.
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Escolhemos um local estratégico para grafitar, o lado oposto à entrada. O Batman ficava bem à vista de quem passava pela rua Harmonia. Quem transitava por ali, ao olhar pra dentro, via um homem-morcego de 2 metros de altura.
Anos depois, o tal Beco do Batman se tornaria referência mundial em arte de rua. Enfim, essa é a historia do beco! Temos muitas outras, tão legais quanto”.
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O VÔO DO HOMEM MORCEGO
Com a abertura política do país, o artista passou a transformar acontecimentos e controvérsias a sua volta em arte. Seu stencil ganhou os muros da cidade, mas também despertou vilões durante várias madrugadas, levando-o algumas vezes à delegacia.
Job percebeu que ao transformar seus pensamentos em ações, conseguia romper com os padrões e mostrar de forma pessoal, o não conformismo da ordem vigente. Assim, o homem morcego levantou vôo.
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SEMPRE DE OLHO NO BATSINAL
O super-herói que batizou o beco, saiu de cena do jeito que chegou, discreto, sem deixar vestígios. Mesmo assim, há referências a ele por todos os lados. Como o Beco do Batman, Leocadio está em constante mudança.
Por anos foi professor de arte em uma renomada escola particular, influenciou inúmeros estudantes, produz e coordena eventos culturais – e claro – continua suas criações.
Em busca da felicidade através da arte, ele reinventa inúmeras vezes a versão mais incrível de si mesmo.
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Trabalhos mais recentes de Job Leocadio. Vida longa ao cabritinho e ao El Cabriton!
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